sábado, 30 de dezembro de 2017

Bem vindo...

Tráz-nos, acima de tudo, saúde e muita  paz. O resto a gente corre atrás!

Feliz Ano Novo






terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Animais domésticos de outras épocas que perduram, ainda que dissimulados, nos dias de hoje!

Os pobrezinhos

por António Lobo Antunes

"Na minha família os animais domésticos não eram cães nem gatos nem pássaros; na minha família os animais domésticos eram pobres.

Cada uma das minhas tias tinha o seu pobre, pessoal e intransmissível, que vinha a casa dos meus avós uma vez por semana buscar, com um sorriso agradecido, a ração de roupa e comida.

Os pobres, para além de serem obviamente pobres (de preferência descalços, para poderem ser calçados pelos donos; de preferência rotos, para poderem vestir camisas velhas que se salvavam, desse modo, de um destino natural de esfregões; de preferência doentes a fim de receberem uma embalagem de aspirina), deviam possuir outras características imprescindíveis: irem à missa, baptizarem os filhos, não andarem bêbedos, e sobretudo, manterem-se orgulhosamente fiéis a quem pertenciam.

Parece que ainda estou a ver um homem de sumptuosos farrapos, parecido com o Tolstoi até na barba, responder, ofendido e soberbo, a uma prima distraída que insistia em oferecer-lhe uma camisola que nenhum de nós queria:

– Eu não sou o seu pobre; eu sou o pobre da menina Teresinha.

O plural de pobre não era "pobres". O plural de pobre era "esta gente".

No Natal e na Páscoa as tias reuniam-se em bando, armadas de fatias de bolo-rei, saquinhos de amêndoas e outras delícias equivalentes, e deslocavam-se piedosamente ao sítio onde os seus animais domésticos habitavam, isto é, um bairro de casas de madeira da periferia de Benfica, nas Pedralvas e junto à Estrada Militar, a fim de distribuírem, numa pompa de reis magos, peúgas de lã, cuecas, sandálias que não serviam a ninguém, pagelas de Nossa Senhora de Fátima e outras maravilhas de igual calibre.

Os pobres surgiam das suas barracas, alvoraçados e gratos, e as minhas tias preveniam-me logo, enxotando-os com as costas da mão:

– Não se chegue muito que esta gente tem piolhos.

Nessas alturas, e só nessas alturas, era permitido oferecer aos pobres dinheiro, presente sempre perigoso por correr o risco de ser gasto (- Esta gente, coitada, não tem noção do dinheiro) de forma de deletéria e irresponsável.

O pobre da minha Carlota, por exemplo, foi proibido de entrar na casa dos meus avós porque, quando ela lhe meteu dez tostões na palma recomendando, maternal, preocupada com a saúde do seu animal doméstico

– Agora veja lá, não gaste tudo em vinho

O atrevido lhe respondeu, malcriadíssimo:

– Não, minha senhora, vou comprar um Alfa-Romeu.

Os filhos dos pobres definiam-se por não irem à escola, serem magrinhos e morrerem muito. Ao perguntar as razões destas características insólitas foi-me dito com um encolher de ombros:

– O que é que o menino quer, esta gente é assim.

E eu entendi que ser pobre, mais do que um destino, era uma espécie de vocação, como ter jeito para jogar bridge ou para tocar piano.

Ao amor dos pobres presidiam duas criaturas do oratório da minha avó, uma em barro e outra em fotografia, que eram o padre Cruz e a Sãozinha, as quais dirigiam a caridade sob um crucifixo de mogno. O padre Cruz era um sujeito chupado, de batina, e a Sãozinha uma jovem cheia de medalhas, com um sorriso alcoviteiro de actriz de cinema das pastilhas elásticas, que me informaram ter oferecido exemplarmente a vida a Deus em troca da saúde dos pais.

A actriz bateu a bota, o pai ficou óptimo e, a partir da altura em que revelaram este milagre, tremia de pânico que a minha mãe, espirrando, me ordenasse

– Ora ofereça lá a vida que estou farta de me assoar, e eu fosse direitinho para o cemitério a fim de ela não ter de beber chás de limão.

Na minha ideia o padre Cruz e a Saõzinha eram casados, tanto mais que num boletim que a minha família assinava, chamado "Almanaque da Sãozinha", se narravam, em comunhão de bens, os milagres de ambos que consistiam geralmente em curas de paralíticos e vigésimos premiados, milagres inacreditavelmente acompanhados de odores dulcíssimos a incenso.

Tanto pobre, tanta Sãozinha e tanto cheiro irritavam-me. E creio que foi por essa época que principiei a olhar, com afecto crescente, uma gravura poeirenta atirada para o sótão que mostrava uma jubilosa multidão de pobres em torno da guilhotina onde cortavam a cabeça aos reis"


segunda-feira, 25 de dezembro de 2017

Que tal reflectir-mos sobre isto?

 "O tal do próximo e o nosso egoísmo 

“Ame o teu próximo como a ti mesmo”, disse Mateus. Todavia, quem é esse próximo? Apesar da abstração com qual os objetos da Bíblia estão envolvidos, o “amor” e o “próximo” de que fala a Escritura são coisas bem concretas. Do “amor” não temos dúvida, uma vez que amamos inclusive coisas odiáveis, como o dinheiro, por exemplo. Já a respeito do tal “próximo” não temos tanta certeza de quem ele é. Ao lermos a passagem bíblica resta a ideia de que esse próximo é um ser tão transcendente quanto Deus, afastado de nós por um universo inteiro. Porém, imanentemente, devemos entender que esse próximo é, como o significado da palavra diz, quem está próximo de nós.

Porém, de que forma amar o próximo como a si mesmo em um mundo no qual estamos, sete bilhões de pessoas, demasiadamente próximos uns dos outros? Antes, temos capacidade para amar, ou somente para desejar coisas para nós mesmos, como o dinheiro, todavia chamando indevidamente o nosso egoísmo hedonista de amor? Ou, ainda que tenhamos uma ideia adequada de amor, não conseguimos amar o próximo como a nós mesmos simplesmente porque não amamos a nós mesmos? Seria a nossa indiferença em relação ao próximo o cumprimento estrito do preceito de Mateus?

Pois bem, como, acima, a abstração bíblica foi criticada, eis um exemplo concreto. Eu estava caminhando pela movimentada Av. N. Sra. De Copacabana quando vi um homem muito velho, negro, imundo, com um pé bastante machucado, sentado no chão molhado da chuva e esticando a mão às pessoas que passavam, pedindo alguma coisa, a qual, nem as pessoas nem eu queríamos saber o que era. Três quarteirões depois, porém, eu não conseguia deixar de pensar naquele pobre senhor. Havia em mim vontade de ajudá-lo. Todavia, pensei eu, o que eu poderia fazer?

Na minha cabeça, ele precisava de, no mínimo, um prato de comida, um copo de café, um banho, roupas limpas, remédio para o seu pé machucado, uma casa até. Agora, como eu, sozinho, poderia resolver todos os problemas dele? Todavia, a ideia de que a felicidade toda dele dependia da minha ajuda só fez com que eu me alienasse da possibilidade de tentar ajudá-lo. Por isso eu, a exemplo das demais pessoas, fiz de conta que ele não estava ali. Mesmo assim, algo em mim que eu ainda não quero nomear fez-me dar meia volta e ir até ele para perguntar o que ele estava precisando.

Qual não foi a minha surpresa ao ouvi-lo dizer que queria apenas ajuda para levantar. Simples assim! Então, sem pestanejar, desvencilhei-me do imediato nojo que socialmente fui ensinados a ter de quem não toma banho e mora na rua e passei meus braços sob os dele para colocá-lo em pé. Ele sorriu, agradeceu e, apoiando-se num cabo de vassoura que fazias as vezes de bengala, seguiu seu rumo. Do mundo de necessidades que eu a priori achei que aquele senhor tinha, ideia todavia errada que só fez com que eu o ignorasse da primeira, aquele meu próximo estava apenas precisando levantar.

O “próximo”, que na Bíblia sempre me pareceu tão abstrato, mostrou-se absolutamente concreto e cognoscível. Além de estar fisicamente próximo –estar diante de mim e viver no mesmo bairro que eu-, o que já deveria ser suficiente para eu me importar com ele, quiçá amá-lo, o fato de eu não conseguir tirá-lo da cabeça alguns quarteirões depois deixou claro também quão metafisicamente próximo aquele próximo estava de mim. Então, dando-me conta dessa dupla proximidade, não foi nada difícil amá-lo como a mim mesmo, pois, caso eu quisesse apenas levantar e não pudesse, o amor de alguém por mim seria nada outro que uma ajuda para levantar-me.

Assim como aconteceu comigo, será que “amar o próximo como a si mesmo” só se concretiza mediante uma espécie de egoísmo? É para sermos amados pelos outros como eles amam a si mesmos que devemos amá-los como a nós mesmos? O nosso próximo só será amável na medida em que, do nosso lado, formos amados por ele enquanto o próximo dele? Agora, se não fôssemos intrinsecamente egoístas, se amássemos uns aos outros espontânea e naturalmente, Mateus precisaria ter cunhado o seu preceito?

Ora, se a natureza dotou-nos de amor próprio, e também do seu exagero, qual seja, o egoísmo, não é porque ela errou, mas porque não existiríamos sem esses afetos. Porém, se fôssemos absolutamente egoístas, desejando a ruína dos outros para que toda a natureza fosse só nossa, valeria a pena existir nessa satisfeita e abastada solidão? Obviamente não, pois a felicidade dos outros também constitui a nossa, assim como a nossa, a dos outros. Então, sem deixar de sermos egoístas, o que, creio eu, é impossível fora da ficção bíblica, esse afeto demasiado humano claramente reconhecido como amor próprio tem escondido em si a receita do amor ao próximo.

Aqui reencontramos o “pharmakon” grego, conceito que diz que a diferença entre veneno e remédio está na dose. Se o egoísmo nos aliena de amar o próximo, é porque sua dose está errada, e então é venenoso. Se, em troca, é capaz de levar-nos a tal amor, sua dose está certa, e aí nosso egoísmo é remédio. Como disse o filósofo Spinoza, nada há na natureza que, em si, seja bom ou mau. Somos nós que fazemos com que as coisas e os afetos recebam esses predicados. A prova está em que as mesmas coisas são boas para uns e más para outros. Sendo assim, tampouco do egoísmo e do amor pode ser dito que são bons ou maus em si mesmos. Antes, suas bondades ou maldades são aquilo que fazemos deles.

Desse modo, se o bem e o mal são produções exclusivas humanas, todavia a partir de coisas e afetos que existem natureza, mas que, nela, não são nem boas nem más, cabe a nós sermos demiurgos virtuosos e fazermos com que as nossas coisas e os nossos afetos, como, por exemplo, o egoísmo e a sua cria mais famosa, qual seja, a alienação acerca das carências dos nossos próximos, possam ser bons para nós, e não apenas maus.

Sumamente, não precisamos de um Deus para dar o que nos falta, como se o bem e a virtude jazessem nalgum céu árduo de alcançar. Basta um de nós, todavia apelidado de apóstolo, para lembrar-nos de que o amor próprio pode e deve ser convertido em amor ao próximo. Isso porque temos em nós todo o amor de que nós e os outros precisamos. Da mesma forma -e isso é mais difícil de entender- temos todos o egoísmo de que também precisamos, seja para seguirmos existindo diante do egoísmo dos outros, seja para sermos amados egoisticamente pelo amor próprio dos outros, uma vez que, como disse o Poeta, “é impossível ser feliz sozinho”. Ou seja, a nossa felicidade precisa da felicidade do nosso próximo."


Continuação de Boas Festas